TIRADENTES: UM REBELDE VERDADEIRO
Seja ou não um bode expiatório de colegas de conspiração, Joaquim José da Silva Xavier foi uma figura excepcional.
Manhã de 21 de abril de 1792. O condenado é conduzido pelas ruas do Rio
de Janeiro, cercado pela tropa, desde a prisão até o patíbulo instalado
no largo da Lampadosa. A cabeça e a barba raspadas, coberto por uma
túnica grosseira e portando um crucifixo, sobe calmamente os degraus,
acompanhado do frei encarregado de lhe dar o amparo de orações na hora
da morte. A multidão reunida assiste a tudo consternada. Ao atingir o
patamar, o homem dirige-se ao carrasco e pede-lhe que abrevie seu
sofrimento, ao que este responde pedindo perdão, pois apenas cumpria o
que mandava a lei. Tão logo o corpo ainda vivo do Tiradentes projetou-se
no espaço vazio, o carrasco Capitania jogou-se sobre seus ombros,
firmando-se na corda e forçando seu peso sobre o do enforcado para
apressar sua morte.
Cumpria-se assim a sentença pronunciada três dias antes, que condenava o
réu "a com baraço e pregão ser conduzido pelas ruas publicas ao lugar
da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto
lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais
publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e
o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo
caminho de Minas".
A visão derradeira dos moradores da capital da colônia de Joaquim José
da Silva Xavier é bem distinta da figura presente até hoje no imaginário
nacional, que remete a Jesus Cristo. Quase três anos antes, o herói da
Inconfidência fora preso sem resistência, tentando se esconder.
Tiradentes também tinha outras alcunhas, como "o Corta-vento" e "o
Liberdade". São detalhes pouco conhecidos, mas não menos importantes
para entender quem era ele e seu papel na conjuração, muito além dos
mitos construídos a partir do fim do século 19, quando se formava a
República brasileira.
Nascido em 1746, na fazenda do Pombal, perto de São José Del Rei do Rio
das Mortes (hoje a cidade de Tiradentes), Joaquim José era o quarto dos
sete filhos de Domingos da Silva Santos e Antônia da Encarnação Xavier.
Aos 11 anos tornou-se órfão. Até perto dos 20, labutou com os irmãos nas
terras herdadas do pai, ao mesmo tempo que praticava as artes de
dentista aprendidas com o tio e padrinho. Por essa época resolveu
comprar algumas mulas, escravos, mercadorias para tentar a vida como
tropeiro nos sertões de Minas Gerais e nas vilas do Caminho Novo, que
levava ao Rio de Janeiro. Chegou até a Bahia, mas os negócios mal o
sustentavam. Desistiu de vez depois de ter sido preso (perto da atual
Diamantina) ao tentar defender um escravo que era espancado pelo dono,
um poderoso fazendeiro.
Tiradentes, em pintura de Oscar
Pereira da Silva
Até 1775, perto dos 30 anos, sobreviveu como dentista, ganhando por isso
o apelido de "Tira-dentes". Trabalhava ocasionalmente também como
minerador e como médico, em vista dos conhecimentos sobre plantas
medicinais adquiridos com seu primo, frei José Mariano da Conceição
Vellozo, consagrado botânico à época. Cansado das atividades errantes
pouco rentáveis, alistou-se na tropa paga de Minas, o Regimento de
Cavalaria, e recebeu o posto de alferes - hoje equivalente ao de
subtenente.
Sem recompensa
Muito cedo ele se destacou na função, em missões que envolviam o
conhecimento de assuntos que iam além do esperado em sua posição. Serviu
no Rio e comandou o destacamento de Sete Lagoas, na principal via de
ligação entre Minas e a Bahia. Em 1781 foi transferido com a
determinação de construir uma variante do Caminho Novo, até o Registro
de Paraibuna. Era um estudioso autodidata de mineralogia e outras
ciências da natureza. Em 1783, foi novamente realocado para combater uma
temida quadrilha de assaltantes que infernizava a vida dos viajantes na
serra da Mantiqueira. Mesmo em menor número, a tropa do alferes
conseguiu derrotar o bando do Montanha, que tinha mais de 30 homens.
As qualificações de Tiradentes eram reconhecidas mas não recompensadas.
Assistia indignado à promoção de colegas, enquanto suas atribuições só
aumentavam. Numa das missões, o governador Luís da Cunha Meneses
determinou que participasse do grupo encarregado de fazer o levantamento
geológico e mineralógico do leste de Minas, na fronteira com o Rio,
área então fechada à mineração. E justificou a ordem devido à "notória
inteligência mineralógica" do alferes.
Nem assim conseguiu ele uma promoção. Formalizou queixa por isso, mas o
governador afirmou que o militar "não passava de um mariola a quem se
podia dar com um pau". Humilhado, Tiradentes pediu licença da tropa e
requereu a ocupação de terras entre os municípios de Matias Barbosa e
Simão Pereira, na divisa entre Minas e o Rio. Sem recursos e tino
comercial, foi levado novamente à falência, tendo apenas suas
habilidades de dentista para afugentá-lo da miséria.
Prisão de Tiradentes, por Antônio Diogo
da Silva Parreiras
Confirmada a sina de ter de viver sob soldo, o alferes voltou ao
regimento, sendo logo encarregado de missão que o levaria a várias
viagens ao Rio de Janeiro. Pôde, então, bem estudar o solo e o sistema
fluvial da região, elaborando planos para o aproveitamento das águas
locais, de modo a solucionar o grave problema de abastecimento da
capital da colônia.
Conspirador urbanista
A abrangência e a viabilidade das propostas do militar são
surpreendentes e estão entre suas facetas menos conhecidas. Apresentou
projetos de canalização dos rios Maracanã e Andaraí, sugeriu a drenagem
de alguns mangues e fez ver a possibilidade de aproveitamento dos
desníveis dos córregos Catete, Comprido e Laranjeiras para a instalação
de moinhos. Também propôs a construção de armazéns e trapiches na área
do porto que permitiriam a carga e descarga de vários navios ao mesmo
tempo. Idealizou ainda um serviço de barcas ligando o Rio a Praia
Grande, em Niterói.
Os administradores desconsideraram os planos; só tinham olhos para a
cobrança de impostos. Menos de 30 anos depois, porém, dom João VI
iniciaria obras na capital nos mesmos moldes das ideias de Tiradentes.
Em 1889, projetos de saneamento do engenheiro Paulo Frontin confirmaram a
validade das propostas.
O apetite fiscal da coroa era tão grande quanto a dificuldade em quitar
suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco produzia além de vinhos e
quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o que consumia. O
ouro brasileiro era a principal moeda de pagamento, mas, a partir da
segunda metade do século 18, já dava mostras de esgotamento.
Foi nesse período, entre 1786 e 1789, que Tiradentes passou a conspirar.
A voracidade da coroa - que cobrava um quinto de tudo o que fosse
recolhido na atividade mineradora, bem como outros tributos sobre o
comércio, a lavoura e a pecuária -, além da notória corrupção do
governador Cunha Meneses, fazia acumular o descontentamento em toda a
capitania de Minas. À insatisfação sobre a carreira no regimento,
Joaquim José somava novas ideias. Fez sua cabeça na biblioteca do cônego
Luís Vieira da Silva. Ali conheceu as teses dos franceses Rousseau,
Montesquieu e outros iluministas, que secundavam o pensamento do inglês
John Locke.
A liberdade emergia como um bem inato do homem. Cada um deveria ser
livre para agir segundo apenas sua consciência e as normas
democraticamente definidas por sua comunidade. Assim repetia o alferes
onde quer que estivesse, e sempre exaltado, o que lhe valeu uma série de
outros apelidos, como "o República", "o Liberdade", "o Gramaticão" e "o
Corta-vento". Costumava circular com livros debaixo do braço, inspirado
também pela ação dos norte-americanos, que haviam se separado do
Império Britânico e implantado um sistema federalista de governo (1776).
Joaquim José estava sempre afirmando que cabia aos brasileiros dirigir
sua própria república. Obcecado por essas ideias e vendo que elas também
ocupavam mentes mais ilustres, começou a reunir-se com personalidades
de Vila Rica (hoje Ouro Preto), como Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José
de Alvarenga Peixoto.
José Álvares Maciel foi outro importante conspirador. Pensador,
idealista, mas de pés no chão. Apesar de Tiradentes ter se apresentado
aos julgadores como o único líder fático do movimento, deve ser
concedida a Maciel a liderança das ideias. Estudioso da filosofia dos
franceses e da formação dos Estados Unidos, teve contato indireto com
Thomas Jefferson, através de um amigo comum, um estudante brasileiro na
França, José Joaquim da Maia, que mantinha correspondência com o então
embaixador americano em Paris, buscando apoio para um desejado movimento
de independência. Ao lado de Domingos Vidal Barbosa, Maciel elaborou as
diretrizes para a nova república.
Execução de Tiradentes, em 21 de
abril de 1792
Não bastaria tornar o Brasil independente, era preciso dar-lhe também as
condições para se manter como nação livre e forte. Para isso, deveria
ser dedicado especial esforço à educação do povo, ainda que o fim da
escravidão estivesse nos planos de forma apenas mitigada. Seriam criadas
escolas, uma universidade em Vila Rica, e a capital transferida para
São João Del Rei. Seria implementada a construção de fornos siderúrgicos
e a fabricação de todos os produtos que até então só eram obtidos de
Portugal.
Advogados, bacharéis, médicos, membros da Igreja, militares, gente do
povo, a insatisfação parecia generalizada. E os conspiradores pretendiam
fazer uso dela, exacerbada diante da perspectiva de uma nova derrama - o
confisco de bens para completar os débitos acumulados na arrecadação
mínima de 100 arrobas de ouro (1470 kg) por ano - esperada para o início
de 1789, sob as ordens do novo governador, Luís Furtado de Mendonça, o
visconde de Barbacena.
Tiradentes se sobressaía como um dos líderes militares do movimento ao
lado de um velho conhecido a quem fora subordinado: o tenente-coronel
Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante do Regimento de
Cavalaria Regular das Minas Gerais. Também participavam de reuniões para
o levante os coronéis Domingos de Abreu Vieira e José Aires Gomes, das
forças auxiliares, e até o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que viria a
ser o grande traidor dos rebeldes.
Por pretender atrair a todos, dos mais nobres aos mais humildes, o
movimento acabou por dar espaço a gente como o português Silvério dos
Reis e outros traidores: Ignácio Correa Pamplona e Basílio de Brito
Malheiros. Eles não titubearam em denunciar a conspiração ao visconde.
A revolta fora planejada para estourar no dia da derrama. A senha do
movimento era "tal dia é o batizado", a data do confisco. Tiradentes e
Andrade desencadeariam as ações em Vila Rica, que culminariam com a
tomada do palácio, a degola de Barbacena e apresentação de sua cabeça ao
povo, que seria então chamado a apoiar uma junta provisória de governo.
O Rio seria ocupado em seguida e conspiradores acionados também em São
Paulo e na Bahia. Mas, a essa altura, o governador já sabia da trama.
Erro fatal
Planos escritos de ação para o levante nunca foram recuperados. A
reconstituição dos acontecimentos e do papel dos participantes sempre
foi dificultada pela escassez de documentação. Mas está claro que, em
todo o planejamento, faltou cogitar saídas alternativas caso algo desse
errado. Erro crasso, considerando haver no grupo militares de alta
patente e o próprio Tiradentes, que já demonstrara astúcia e senso
estratégico na derrota do bando do Montanha. Foram ingênuos os
inconfidentes. Bastou o governador suspender a derrama e o tal dia não
aconteceu. O burburinho sobre o levante era considerável, e, a partir
das informações de Silvério, foram emitidas ordens de prisão em Vila
Rica e no Rio de Janeiro. Joaquim José da Silva Xavier, que estava lá em
busca de novas adesões ao movimento e evitando o excesso de exposição
em Minas, foi seguido por vários dias e preso no sótão da casa de
Domingos Fernandes da Cruz, em 10 de maio de 1789, onde se escondera.
Estava armado, mas preferiu não reagir.
O tribunal (uma comissão especial formada por desembargadores da Casa de
Suplicação de Lisboa) culminou com a condenação de 28 réus, além de
Tiradentes, chegando a impor penas à memória e aos descendentes de
outros três falecidos na prisão. A pena de morte aplicada a dez dos
conjurados, porém, foi comutada na última hora em degredo perpétuo pelo
regente dom João, em nome da rainha dona Maria I. A forca restou só para
o alferes. Há quem afirme que, dessa forma, Portugal quis fazer
entender a conspiração como aventura de um reles e tresloucado dentista,
que com lábia aliciou mentes mais ilustres.
Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo
Kenneth Maxwell, numa das mais importantes obras sobre a Inconfidência, A Devassa da Devassa, esboça
a tese de que Tiradentes seria mero "bode expiatório", elemento apenas
periférico dentre os plutocratas e intelectuais que compunham o
movimento nascido não apenas de ideais, mas fundamentalmente de
interesses econômicos. (Como a Revolução Americana.) O mesmo
brasilianista, porém, não deixa de reconhecer o caráter ímpar do mártir,
de exceção "em uma história particularmente carente de grandes homens".
Durante os interrogatórios sempre reclamou Joaquim José a exclusiva
culpa pela iniciativa da sedição, inocentando seus companheiros de
outros crimes que não fosse o de ouvir suas ideias.
Qualquer que tenha sido seu papel, Tiradentes tornou-se um autêntico
herói nacional. Primeiro foi adotado pelo movimento republicano, que o
elegeu como mártir cívico-religioso e antimonarquista, fazendo prosperar
as representações que o aproximam de Cristo. O 21 de abril tornou-se
feriado nacional em 1890. Tiradentes teve também exaltada sua imagem de
militar patriota, quando nomeado patrono da nação pelo governo militar,
em 1965, enquanto os movimentos de esquerda não deixaram de recorrer a
ele como símbolo de rebeldia. "O segredo da vitalidade do herói talvez
esteja afinal nessa ambiguidade, em sua resistência aos continuados
esforços de esquartejamento de sua memória", diz o historiador José
Murilo de Carvalho em A Formação das Almas.
"Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu
daria pela libertação da minha pátria", teria dito Tiradentes ao ouvir
serenamente a sentença. Trinta anos depois da execução, dom Pedro I, o
herdeiro da coroa que o esquartejara, proclamava a independência do
Brasil. Era a prova de que os propósitos de Joaquim José foram plantados
em terra fértil. Um dos conjurados, José de Rezende Costa, filho,
tornou-se constituinte na Assembleia de 1823, a primeira da nova nação
brasileira.
Saiba mais
A Devassa da Devassa - A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808, Kenneth Maxwell, Paz e Terra, 2009
Historia da Inconfidência de Minas Gerais, Augusto de Lima Júnior, Itatiaia, 1996
Tiradentes, José Alberto Pinho Neves (org.), Ministério da Educação e do Desporto, 1993
TIRADENTES: UM REBELDE VERDADEIRO
Seja ou não um bode expiatório de colegas de conspiração, Joaquim José da Silva Xavier foi uma figura excepcional.
Manhã de 21 de abril de 1792. O condenado é conduzido pelas ruas do Rio
de Janeiro, cercado pela tropa, desde a prisão até o patíbulo instalado
no largo da Lampadosa. A cabeça e a barba raspadas, coberto por uma
túnica grosseira e portando um crucifixo, sobe calmamente os degraus,
acompanhado do frei encarregado de lhe dar o amparo de orações na hora
da morte. A multidão reunida assiste a tudo consternada. Ao atingir o
patamar, o homem dirige-se ao carrasco e pede-lhe que abrevie seu
sofrimento, ao que este responde pedindo perdão, pois apenas cumpria o
que mandava a lei. Tão logo o corpo ainda vivo do Tiradentes projetou-se
no espaço vazio, o carrasco Capitania jogou-se sobre seus ombros,
firmando-se na corda e forçando seu peso sobre o do enforcado para
apressar sua morte.
Cumpria-se assim a sentença pronunciada três dias antes, que condenava o
réu "a com baraço e pregão ser conduzido pelas ruas publicas ao lugar
da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto
lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais
publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e
o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo
caminho de Minas".
A visão derradeira dos moradores da capital da colônia de Joaquim José
da Silva Xavier é bem distinta da figura presente até hoje no imaginário
nacional, que remete a Jesus Cristo. Quase três anos antes, o herói da
Inconfidência fora preso sem resistência, tentando se esconder.
Tiradentes também tinha outras alcunhas, como "o Corta-vento" e "o
Liberdade". São detalhes pouco conhecidos, mas não menos importantes
para entender quem era ele e seu papel na conjuração, muito além dos
mitos construídos a partir do fim do século 19, quando se formava a
República brasileira.
Nascido em 1746, na fazenda do Pombal, perto de São José Del Rei do Rio
das Mortes (hoje a cidade de Tiradentes), Joaquim José era o quarto dos
sete filhos de Domingos da Silva Santos e Antônia da Encarnação Xavier.
Aos 11 anos tornou-se órfão. Até perto dos 20, labutou com os irmãos nas
terras herdadas do pai, ao mesmo tempo que praticava as artes de
dentista aprendidas com o tio e padrinho. Por essa época resolveu
comprar algumas mulas, escravos, mercadorias para tentar a vida como
tropeiro nos sertões de Minas Gerais e nas vilas do Caminho Novo, que
levava ao Rio de Janeiro. Chegou até a Bahia, mas os negócios mal o
sustentavam. Desistiu de vez depois de ter sido preso (perto da atual
Diamantina) ao tentar defender um escravo que era espancado pelo dono,
um poderoso fazendeiro.
Tiradentes, em pintura de Oscar
Pereira da Silva
Até 1775, perto dos 30 anos, sobreviveu como dentista, ganhando por isso
o apelido de "Tira-dentes". Trabalhava ocasionalmente também como
minerador e como médico, em vista dos conhecimentos sobre plantas
medicinais adquiridos com seu primo, frei José Mariano da Conceição
Vellozo, consagrado botânico à época. Cansado das atividades errantes
pouco rentáveis, alistou-se na tropa paga de Minas, o Regimento de
Cavalaria, e recebeu o posto de alferes - hoje equivalente ao de
subtenente.
Sem recompensa
Muito cedo ele se destacou na função, em missões que envolviam o
conhecimento de assuntos que iam além do esperado em sua posição. Serviu
no Rio e comandou o destacamento de Sete Lagoas, na principal via de
ligação entre Minas e a Bahia. Em 1781 foi transferido com a
determinação de construir uma variante do Caminho Novo, até o Registro
de Paraibuna. Era um estudioso autodidata de mineralogia e outras
ciências da natureza. Em 1783, foi novamente realocado para combater uma
temida quadrilha de assaltantes que infernizava a vida dos viajantes na
serra da Mantiqueira. Mesmo em menor número, a tropa do alferes
conseguiu derrotar o bando do Montanha, que tinha mais de 30 homens.
As qualificações de Tiradentes eram reconhecidas mas não recompensadas.
Assistia indignado à promoção de colegas, enquanto suas atribuições só
aumentavam. Numa das missões, o governador Luís da Cunha Meneses
determinou que participasse do grupo encarregado de fazer o levantamento
geológico e mineralógico do leste de Minas, na fronteira com o Rio,
área então fechada à mineração. E justificou a ordem devido à "notória
inteligência mineralógica" do alferes.
Nem assim conseguiu ele uma promoção. Formalizou queixa por isso, mas o
governador afirmou que o militar "não passava de um mariola a quem se
podia dar com um pau". Humilhado, Tiradentes pediu licença da tropa e
requereu a ocupação de terras entre os municípios de Matias Barbosa e
Simão Pereira, na divisa entre Minas e o Rio. Sem recursos e tino
comercial, foi levado novamente à falência, tendo apenas suas
habilidades de dentista para afugentá-lo da miséria.
Prisão de Tiradentes, por Antônio Diogo
da Silva Parreiras
Confirmada a sina de ter de viver sob soldo, o alferes voltou ao
regimento, sendo logo encarregado de missão que o levaria a várias
viagens ao Rio de Janeiro. Pôde, então, bem estudar o solo e o sistema
fluvial da região, elaborando planos para o aproveitamento das águas
locais, de modo a solucionar o grave problema de abastecimento da
capital da colônia.
Conspirador urbanista
A abrangência e a viabilidade das propostas do militar são
surpreendentes e estão entre suas facetas menos conhecidas. Apresentou
projetos de canalização dos rios Maracanã e Andaraí, sugeriu a drenagem
de alguns mangues e fez ver a possibilidade de aproveitamento dos
desníveis dos córregos Catete, Comprido e Laranjeiras para a instalação
de moinhos. Também propôs a construção de armazéns e trapiches na área
do porto que permitiriam a carga e descarga de vários navios ao mesmo
tempo. Idealizou ainda um serviço de barcas ligando o Rio a Praia
Grande, em Niterói.
Os administradores desconsideraram os planos; só tinham olhos para a
cobrança de impostos. Menos de 30 anos depois, porém, dom João VI
iniciaria obras na capital nos mesmos moldes das ideias de Tiradentes.
Em 1889, projetos de saneamento do engenheiro Paulo Frontin confirmaram a
validade das propostas.
O apetite fiscal da coroa era tão grande quanto a dificuldade em quitar
suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco produzia além de vinhos e
quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o que consumia. O
ouro brasileiro era a principal moeda de pagamento, mas, a partir da
segunda metade do século 18, já dava mostras de esgotamento.
Foi nesse período, entre 1786 e 1789, que Tiradentes passou a conspirar.
A voracidade da coroa - que cobrava um quinto de tudo o que fosse
recolhido na atividade mineradora, bem como outros tributos sobre o
comércio, a lavoura e a pecuária -, além da notória corrupção do
governador Cunha Meneses, fazia acumular o descontentamento em toda a
capitania de Minas. À insatisfação sobre a carreira no regimento,
Joaquim José somava novas ideias. Fez sua cabeça na biblioteca do cônego
Luís Vieira da Silva. Ali conheceu as teses dos franceses Rousseau,
Montesquieu e outros iluministas, que secundavam o pensamento do inglês
John Locke.
A liberdade emergia como um bem inato do homem. Cada um deveria ser
livre para agir segundo apenas sua consciência e as normas
democraticamente definidas por sua comunidade. Assim repetia o alferes
onde quer que estivesse, e sempre exaltado, o que lhe valeu uma série de
outros apelidos, como "o República", "o Liberdade", "o Gramaticão" e "o
Corta-vento". Costumava circular com livros debaixo do braço, inspirado
também pela ação dos norte-americanos, que haviam se separado do
Império Britânico e implantado um sistema federalista de governo (1776).
Joaquim José estava sempre afirmando que cabia aos brasileiros dirigir
sua própria república. Obcecado por essas ideias e vendo que elas também
ocupavam mentes mais ilustres, começou a reunir-se com personalidades
de Vila Rica (hoje Ouro Preto), como Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José
de Alvarenga Peixoto.
José Álvares Maciel foi outro importante conspirador. Pensador,
idealista, mas de pés no chão. Apesar de Tiradentes ter se apresentado
aos julgadores como o único líder fático do movimento, deve ser
concedida a Maciel a liderança das ideias. Estudioso da filosofia dos
franceses e da formação dos Estados Unidos, teve contato indireto com
Thomas Jefferson, através de um amigo comum, um estudante brasileiro na
França, José Joaquim da Maia, que mantinha correspondência com o então
embaixador americano em Paris, buscando apoio para um desejado movimento
de independência. Ao lado de Domingos Vidal Barbosa, Maciel elaborou as
diretrizes para a nova república.
Execução de Tiradentes, em 21 de
abril de 1792
Não bastaria tornar o Brasil independente, era preciso dar-lhe também as
condições para se manter como nação livre e forte. Para isso, deveria
ser dedicado especial esforço à educação do povo, ainda que o fim da
escravidão estivesse nos planos de forma apenas mitigada. Seriam criadas
escolas, uma universidade em Vila Rica, e a capital transferida para
São João Del Rei. Seria implementada a construção de fornos siderúrgicos
e a fabricação de todos os produtos que até então só eram obtidos de
Portugal.
Advogados, bacharéis, médicos, membros da Igreja, militares, gente do
povo, a insatisfação parecia generalizada. E os conspiradores pretendiam
fazer uso dela, exacerbada diante da perspectiva de uma nova derrama - o
confisco de bens para completar os débitos acumulados na arrecadação
mínima de 100 arrobas de ouro (1470 kg) por ano - esperada para o início
de 1789, sob as ordens do novo governador, Luís Furtado de Mendonça, o
visconde de Barbacena.
Tiradentes se sobressaía como um dos líderes militares do movimento ao
lado de um velho conhecido a quem fora subordinado: o tenente-coronel
Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante do Regimento de
Cavalaria Regular das Minas Gerais. Também participavam de reuniões para
o levante os coronéis Domingos de Abreu Vieira e José Aires Gomes, das
forças auxiliares, e até o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que viria a
ser o grande traidor dos rebeldes.
Por pretender atrair a todos, dos mais nobres aos mais humildes, o
movimento acabou por dar espaço a gente como o português Silvério dos
Reis e outros traidores: Ignácio Correa Pamplona e Basílio de Brito
Malheiros. Eles não titubearam em denunciar a conspiração ao visconde.
A revolta fora planejada para estourar no dia da derrama. A senha do
movimento era "tal dia é o batizado", a data do confisco. Tiradentes e
Andrade desencadeariam as ações em Vila Rica, que culminariam com a
tomada do palácio, a degola de Barbacena e apresentação de sua cabeça ao
povo, que seria então chamado a apoiar uma junta provisória de governo.
O Rio seria ocupado em seguida e conspiradores acionados também em São
Paulo e na Bahia. Mas, a essa altura, o governador já sabia da trama.
Erro fatal
Planos escritos de ação para o levante nunca foram recuperados. A
reconstituição dos acontecimentos e do papel dos participantes sempre
foi dificultada pela escassez de documentação. Mas está claro que, em
todo o planejamento, faltou cogitar saídas alternativas caso algo desse
errado. Erro crasso, considerando haver no grupo militares de alta
patente e o próprio Tiradentes, que já demonstrara astúcia e senso
estratégico na derrota do bando do Montanha. Foram ingênuos os
inconfidentes. Bastou o governador suspender a derrama e o tal dia não
aconteceu. O burburinho sobre o levante era considerável, e, a partir
das informações de Silvério, foram emitidas ordens de prisão em Vila
Rica e no Rio de Janeiro. Joaquim José da Silva Xavier, que estava lá em
busca de novas adesões ao movimento e evitando o excesso de exposição
em Minas, foi seguido por vários dias e preso no sótão da casa de
Domingos Fernandes da Cruz, em 10 de maio de 1789, onde se escondera.
Estava armado, mas preferiu não reagir.
O tribunal (uma comissão especial formada por desembargadores da Casa de
Suplicação de Lisboa) culminou com a condenação de 28 réus, além de
Tiradentes, chegando a impor penas à memória e aos descendentes de
outros três falecidos na prisão. A pena de morte aplicada a dez dos
conjurados, porém, foi comutada na última hora em degredo perpétuo pelo
regente dom João, em nome da rainha dona Maria I. A forca restou só para
o alferes. Há quem afirme que, dessa forma, Portugal quis fazer
entender a conspiração como aventura de um reles e tresloucado dentista,
que com lábia aliciou mentes mais ilustres.
Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo
Kenneth Maxwell, numa das mais importantes obras sobre a Inconfidência, A Devassa da Devassa, esboça
a tese de que Tiradentes seria mero "bode expiatório", elemento apenas
periférico dentre os plutocratas e intelectuais que compunham o
movimento nascido não apenas de ideais, mas fundamentalmente de
interesses econômicos. (Como a Revolução Americana.) O mesmo
brasilianista, porém, não deixa de reconhecer o caráter ímpar do mártir,
de exceção "em uma história particularmente carente de grandes homens".
Durante os interrogatórios sempre reclamou Joaquim José a exclusiva
culpa pela iniciativa da sedição, inocentando seus companheiros de
outros crimes que não fosse o de ouvir suas ideias.
Qualquer que tenha sido seu papel, Tiradentes tornou-se um autêntico
herói nacional. Primeiro foi adotado pelo movimento republicano, que o
elegeu como mártir cívico-religioso e antimonarquista, fazendo prosperar
as representações que o aproximam de Cristo. O 21 de abril tornou-se
feriado nacional em 1890. Tiradentes teve também exaltada sua imagem de
militar patriota, quando nomeado patrono da nação pelo governo militar,
em 1965, enquanto os movimentos de esquerda não deixaram de recorrer a
ele como símbolo de rebeldia. "O segredo da vitalidade do herói talvez
esteja afinal nessa ambiguidade, em sua resistência aos continuados
esforços de esquartejamento de sua memória", diz o historiador José
Murilo de Carvalho em A Formação das Almas.
"Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu
daria pela libertação da minha pátria", teria dito Tiradentes ao ouvir
serenamente a sentença. Trinta anos depois da execução, dom Pedro I, o
herdeiro da coroa que o esquartejara, proclamava a independência do
Brasil. Era a prova de que os propósitos de Joaquim José foram plantados
em terra fértil. Um dos conjurados, José de Rezende Costa, filho,
tornou-se constituinte na Assembleia de 1823, a primeira da nova nação
brasileira.
Saiba mais
A Devassa da Devassa - A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808, Kenneth Maxwell, Paz e Terra, 2009
Historia da Inconfidência de Minas Gerais, Augusto de Lima Júnior, Itatiaia, 1996
Tiradentes, José Alberto Pinho Neves (org.), Ministério da Educação e do Desporto, 1993
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